quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Reflexão à beira de um gato

Um gato nem sempre é. Às vezes, é como se não fosse.
É como se fosse só silêncio, só vontade, uma existência absoluta e sincera. Não sei por onde anda, nunca sei onde está. O gato anda, mas é como se voasse, corre, mas flutua, não há pegadas nem pisadas, não há barulho nem rastros nem sombra de coisa alguma. Um gato é silêncio, maciez e paciência. Eu não o vejo, mas ele nunca deixou de me enxergar. Pra mim tudo é surpresa, mas ele planeja há horas.
Um gato é limpeza, dedicação ao si mesmo, admiração pelo ser, pelo tudo e pelo nada que carrega em si. Um gato não é, e por não ser, é mais do eu nunca serei. Um gato ouve e sente, enquanto eu apenas vejo. Um gato dorme e descansa, enquanto eu apenas fecho os olhos e espero. Um gato não é, nem nunca será e nunca precisará ser. E eu sou e, na certeza de ser, acabo não sendo nada. Mas um gato é a certeza e a tranqüilidade daqueles que não têm dúvidas de si mesmos. Dos que não precisam ser nada pra ter certeza de que nunca deixaram de ser. Um gato é e desfila sabendo que pra sempre será essa intriga, essa incógnita, a maldição, a sorte. Um gato é o pelo, bigodes e patas, mas é muito mais do que pelos, bigodes e patas. Os homens têm pelos, bigodes e patas e não são o que querem, nem nunca serão. Mas um gato é o que quer e nunca tem dúvidas de ser quem é.
(Enquanto eu durmo e sonho com gato e escrevo sobre o gato e falo com o gato, o gato é e não pensa em mim, nem sonha comigo e nem nunca pensará que valho eu a pena ser escrita ou pensada).
Divido a casa com esse ser cujo pensamento me foge. Não sei se me ama ou me despreza. É bem provável que as duas coisas. Não sei se me suporta ou se me admira, mas é bem possível que ele seja a complexidade que reina entre esse duplo de tudo. Esse duplo é o gato, o dobro de si mesmo, um gêmeo perverso e único de tudo o que é e não é. O gato é sempre um outro, é sempre aquele que não entendo, é sempre aquele que não sou eu, aquilo que não sou e não serei. Um gato me enxerga e me faz ver a mim mesma, minha simplicidade, minha ignorância. Um gato me lembra da espera e da harmonia, me faz crer na natureza e na inteligência das coisas. Um gato sabe a vida de tudo e nunca desconfia de nada inanimado. Ele sabe da alma escondida nas coisas e não se deixa enganar pela falta de movimento.
(O gato me olha e não sou nada. O que ele vê quando me olha? Porque a indiferença? Será que vê algo que não enxergo? Porque essa insistência em me mostrar o que realmente sou?)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Regato

Renascença...

(Refazenda - Abacateiro acataremos teu ato/Nós também somos do mato como o pato e o leão/Aguardaremos brincaremos no regato/Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração – Gilberto Gil)

Quando eu nascer de novo, quero ser gato. Nada de trabalhar o dia inteiro – essa dedicação sem fim ao nada – nada de subordinação, submissão, aceitação. Quero ser gato. Quero me recusar a ser qualquer outra coisa que me obriguem, quero ser feliz com minha natureza felina, sabendo que nunca haverá no mundo ser mais gracioso e inteligente que eu.
Não quero discutir, não quero me explicar, não quero ganhar dinheiro nem me preocupar com o que pensam de mim. Quero ser gato e ter certeza da minha superioridade em relação a todos os seres da Terra. Quero estar certa de que nunca ninguém me questionará, por mais absurdas que sejam minhas ações. Quero derrubar um por um dos objetos da estante, pois sei do efeito abundante da gravidade e olhar a reação de todos, que hesitam em me repreender (a beleza e a elegância causam silêncio).
Quero ser aceito e fim. Quero lamber meu pelo sabendo que minha elegância nunca será superada, me arrumar sabendo-me como absoluto em leveza e formosidade. Não quero mais dar explicações. Quero deitar onde quero, como quero, e ter certeza de não ser importunado. Quero olhar a todos com o desdém das criaturas superiores e ficar-me onde quiser e dormir com a tranqüilidade que não permita interrupções. Quero não mais ser interrompido, quero ser servido por humanos escravos com iguarias dos mais diversos sabores. Quero ser gato.
Quero me contentar com o ritmo de minha própria cauda e saber que nunca o balançar de nenhuma criatura vai se comparar com a minha leveza. Quero deitar ao sol para contemplar somente a mim e a minha cor translúcida pelo raio solar. Quero ter certeza de que nada seria o sol sem minha presença veluda. Quero descobrir meu corpo a cada lambida, quero perceber minha cauda afoita como esse estranho que me espreita, essa sombra que me segue. Quero ser esse gato-sombra que conhece o escuro como conhece a si mesmo.
Quero ser gato e dormir, dormir como quem não liga para nada no mundo além da minha própria existência. E acordar, deparando-me com meu pelo de seda e sentir uma vontade irresistível de ser quem eu sou. Quero a alegria das coisas macias e a possibilidade das coisas invisíveis. Quero vencer o silêncio humano e a cegueira de todos, vendo e ouvindo coisas que ninguém mais conseguirá. E, sendo gato, quero uma mão que afague e talvez algumas palavras suaves. Não quero ser compreendido, nem interpretado. Quero ser gato, e bastar-me com o que sou, nunca duvidando da superioridade que há em saber ouvir as sombras e enxergar o silêncio. E pobres das pessoas que serão sempre pessoas e se contentam em pensarem-se e pensar sobre o que pensam, se metapensando o tempo todo... E vivem nas sombras e não sabem de nada. Quero ser um gato sem perguntas. Um gato apenas. Pois um gato nada sabe, apenas sabe que tudo enxerga. Um gato não tem dúvidas: tem certeza do mistério.