segunda-feira, 14 de março de 2011

Calor felino

Verão

Os gatos se entregam no verão. O calor do sol os derrete aos poucos e eles se esvaem no chão, em silêncio. Eu não resisto ao sol. Mas ele os desafiam a 40 graus. Será força? Será fraqueza?
Os gatos se penteiam e se douram colhendo os raios de sol de um céu incandescente. Seus movimentos ficam mais lentos, mais distantes. Se já antes não sabiam da minha existência, o calor faz a minha presença ainda mais desnecessária.
E ficam-lhes os pelos mais dourados, embora mais escassos. Gatos no verão são flores que se despetalam ao sol. Suas plumas voam à leve brisa e enfeitam os cantos da casa. Ficaria sua vaidade abalada, ante desfalque de algo tão valioso? A mim não aparentam.
Se a mim o calor irrita e exaure, para os gatos ele causa esse delicioso derretimento, uma entrega maliciosa ao seu próprio eu. Suas danças são mais lentas, mas sua cauda ainda impera como um polegar de Cesar aprovando e desaprovando, sentenciando ou não os meus movimentos.
Um gato cresce no verão. Suas proporções se esticam, pernas mais longas, braços mais compridos, unhas saltando das patas vez ou outra. Com o calor, o corpo etéreo do gato se expande em um eterno espreguiçar. As barrigas peludas e roliças se mostram como em nenhuma outra época, embora tocá-las seja uma ousadia que somente um humano pouco informado faria (tocar a barriga de um gato é a mais alta demonstração de intimidade que existe no mundo; sair ileso ainda é um mistério).
O calor ferve os gatos como a água. Viram vapor pela casa, presença inerte. O verão hiberna meus felinos que aproveitam a estação, assim como todas, para aproveitarem-se a si mesmos. Pra que ventilador? Pra que ar condicionado? Os gatos imergem em si, deleitando-se em saber de si mesmos. O calor os faz amarem-se ainda mais. Sua expansão corporal apenas reflete sua grandeza, impossível esquecê-la. Um corpo do gato no verão é um corpo satisfeito, expandido em sua gatice. No inverno, gatos encolhem-se, escondem-se, diminuem. Quem vê o gato no inverno? Apenas o constatamos nos pelos deixados nas roupas de lã. Mas no verão o gato é sua potência, seu orgulho, sua maioridade. O verão faz do gato água que expande, ser evaporado e satisfeito em seu próprio calor. O gato não precisa de mim, pois seu próprio calor lhe basta...

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Reflexão à beira de um gato

Um gato nem sempre é. Às vezes, é como se não fosse.
É como se fosse só silêncio, só vontade, uma existência absoluta e sincera. Não sei por onde anda, nunca sei onde está. O gato anda, mas é como se voasse, corre, mas flutua, não há pegadas nem pisadas, não há barulho nem rastros nem sombra de coisa alguma. Um gato é silêncio, maciez e paciência. Eu não o vejo, mas ele nunca deixou de me enxergar. Pra mim tudo é surpresa, mas ele planeja há horas.
Um gato é limpeza, dedicação ao si mesmo, admiração pelo ser, pelo tudo e pelo nada que carrega em si. Um gato não é, e por não ser, é mais do eu nunca serei. Um gato ouve e sente, enquanto eu apenas vejo. Um gato dorme e descansa, enquanto eu apenas fecho os olhos e espero. Um gato não é, nem nunca será e nunca precisará ser. E eu sou e, na certeza de ser, acabo não sendo nada. Mas um gato é a certeza e a tranqüilidade daqueles que não têm dúvidas de si mesmos. Dos que não precisam ser nada pra ter certeza de que nunca deixaram de ser. Um gato é e desfila sabendo que pra sempre será essa intriga, essa incógnita, a maldição, a sorte. Um gato é o pelo, bigodes e patas, mas é muito mais do que pelos, bigodes e patas. Os homens têm pelos, bigodes e patas e não são o que querem, nem nunca serão. Mas um gato é o que quer e nunca tem dúvidas de ser quem é.
(Enquanto eu durmo e sonho com gato e escrevo sobre o gato e falo com o gato, o gato é e não pensa em mim, nem sonha comigo e nem nunca pensará que valho eu a pena ser escrita ou pensada).
Divido a casa com esse ser cujo pensamento me foge. Não sei se me ama ou me despreza. É bem provável que as duas coisas. Não sei se me suporta ou se me admira, mas é bem possível que ele seja a complexidade que reina entre esse duplo de tudo. Esse duplo é o gato, o dobro de si mesmo, um gêmeo perverso e único de tudo o que é e não é. O gato é sempre um outro, é sempre aquele que não entendo, é sempre aquele que não sou eu, aquilo que não sou e não serei. Um gato me enxerga e me faz ver a mim mesma, minha simplicidade, minha ignorância. Um gato me lembra da espera e da harmonia, me faz crer na natureza e na inteligência das coisas. Um gato sabe a vida de tudo e nunca desconfia de nada inanimado. Ele sabe da alma escondida nas coisas e não se deixa enganar pela falta de movimento.
(O gato me olha e não sou nada. O que ele vê quando me olha? Porque a indiferença? Será que vê algo que não enxergo? Porque essa insistência em me mostrar o que realmente sou?)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Regato

Renascença...

(Refazenda - Abacateiro acataremos teu ato/Nós também somos do mato como o pato e o leão/Aguardaremos brincaremos no regato/Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração – Gilberto Gil)

Quando eu nascer de novo, quero ser gato. Nada de trabalhar o dia inteiro – essa dedicação sem fim ao nada – nada de subordinação, submissão, aceitação. Quero ser gato. Quero me recusar a ser qualquer outra coisa que me obriguem, quero ser feliz com minha natureza felina, sabendo que nunca haverá no mundo ser mais gracioso e inteligente que eu.
Não quero discutir, não quero me explicar, não quero ganhar dinheiro nem me preocupar com o que pensam de mim. Quero ser gato e ter certeza da minha superioridade em relação a todos os seres da Terra. Quero estar certa de que nunca ninguém me questionará, por mais absurdas que sejam minhas ações. Quero derrubar um por um dos objetos da estante, pois sei do efeito abundante da gravidade e olhar a reação de todos, que hesitam em me repreender (a beleza e a elegância causam silêncio).
Quero ser aceito e fim. Quero lamber meu pelo sabendo que minha elegância nunca será superada, me arrumar sabendo-me como absoluto em leveza e formosidade. Não quero mais dar explicações. Quero deitar onde quero, como quero, e ter certeza de não ser importunado. Quero olhar a todos com o desdém das criaturas superiores e ficar-me onde quiser e dormir com a tranqüilidade que não permita interrupções. Quero não mais ser interrompido, quero ser servido por humanos escravos com iguarias dos mais diversos sabores. Quero ser gato.
Quero me contentar com o ritmo de minha própria cauda e saber que nunca o balançar de nenhuma criatura vai se comparar com a minha leveza. Quero deitar ao sol para contemplar somente a mim e a minha cor translúcida pelo raio solar. Quero ter certeza de que nada seria o sol sem minha presença veluda. Quero descobrir meu corpo a cada lambida, quero perceber minha cauda afoita como esse estranho que me espreita, essa sombra que me segue. Quero ser esse gato-sombra que conhece o escuro como conhece a si mesmo.
Quero ser gato e dormir, dormir como quem não liga para nada no mundo além da minha própria existência. E acordar, deparando-me com meu pelo de seda e sentir uma vontade irresistível de ser quem eu sou. Quero a alegria das coisas macias e a possibilidade das coisas invisíveis. Quero vencer o silêncio humano e a cegueira de todos, vendo e ouvindo coisas que ninguém mais conseguirá. E, sendo gato, quero uma mão que afague e talvez algumas palavras suaves. Não quero ser compreendido, nem interpretado. Quero ser gato, e bastar-me com o que sou, nunca duvidando da superioridade que há em saber ouvir as sombras e enxergar o silêncio. E pobres das pessoas que serão sempre pessoas e se contentam em pensarem-se e pensar sobre o que pensam, se metapensando o tempo todo... E vivem nas sombras e não sabem de nada. Quero ser um gato sem perguntas. Um gato apenas. Pois um gato nada sabe, apenas sabe que tudo enxerga. Um gato não tem dúvidas: tem certeza do mistério.

domingo, 11 de outubro de 2009

Ressugato


E quando vai chegar o dia em que voltará o messias e não será nem homem nem mulher, mas um gato?
E toda a humanidade se espantará, horrorizada, mas os gatos se contentarão com um leve balançar das orelhas?
Amem a si mesmos como os gatos se amam, ele dirá. E prefiram o silêncio quando souberem que suas palavras nada acrescentarão. E dividam seu peixe e seu leite e não se envergonhem de ser quem são.
Tu és a criatura mais linda que existe, ele dirá.
E não se esqueçam de ronronar de vez em quando. E lembrem-se sempre: busquem as coisas macias e tudo mais lhe será acrescentado. Seja o pastor de si mesmo e nada lhe faltará.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Terra

Pergunte ao pó
Em minhas leituras, me deparei com um texto sobre a perspectiva indígena de ver mundo. Tudo são pessoas, mas em diversas formas e roupagens, acreditam os índios. A pedra, o macaco, a grama. Tudo deve ser respeitado, porque tudo é um só, todos são gente, vida em forma de bicho, de planta, de pedra.


Então me vejo de olhos fechados, esquecendo a aparência de tudo e me lembrando apenas de que tudo é um. Se abro os olhos, me lembro que é pedra, macaco, grama e piso, chuto e cuspo. Porque pedra, macaco e grama não é gente e não me interessa.
Tento lembrar dos índios e de seu cego respeito por tudo, pelo espírito das coisas, pelo universo uno. Só posso conversar com o mundo se esqueço a sua aparência, se ignoro que eu ando de pé e que o gato lambe suas patas. Tenho que perceber apenas que meu pêlo também é longo e que eu preciso comer e viver, assim como a grama e o macaco. Mas que às vezes preciso ficar quieta, como a pedra. E que a pedra não precisa de mim. E nem o macaco e nem a grama. E que, enquanto eu insisto em dizer que isso é grama, isso é pedra, isso é macaco, o macaco sobe na árvore e ignora completamente o que penso dele e o nome que atribuí a sua existência. E que a grama precisa de terra, do sol, mas não precisa de mim, e nunca vai me buscar para coisa alguma, pois sou inútil a ela. E que a pedra não precisa de mim, nem da árvore, nem do sol e nem da terra. E não precisa que eu a chame de pedra para existir e nem precisa que eu exista para existir. Pois a pedra é, simplesmente é, porque sempre foi, e sempre vai ser. Mas, principalmente e provavelmente, porque não sabe que é.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Um dia, dois gatos

Gatequese
Ah, peludice tão simétrica
Listradez tão bem desenhada!
Como podem essas mãos e pés forrados
Andar todo o tempo em silêncio?
Explorar a beleza da casa
Apenas com quieta presença?

Ó gato que come silencioso,
Que dorme murmurando
Que fala com prazer em agudos ruídos
O que te guia pela minha casa?
Por que amá-la com tua presença?

Como explicar o teu desenho
Linhas pretas em teu pêlo
Essa curva da tua espinha, as orelhas em relevo
Continuação da perfeita cabeça?

Como explicar que te retorças
Na mobília te espalhando?
Derretendo-se teu pêlo
Incorpora-te na estante.
Tu és dono em minha casa
Tu enfeitas o que não tenho
E é perfeita minha morada
Com tua pessoa felina.

É como tudo tão branco
Os cômodos sempre tão tristes
Imergidos em algo pobre e simples.
Mas há um gato deitado.

Olhos descansados e mudos
Observam o que acontece dormindo.
Com tua orelha parabólica
Tu escutas as vozes de tudo.

E a casa se enche de ondas e coisas
Que ninguém jamais viu ou verá
Em nossa humana humildade.
Mas o gato escuta as orelhas
E seus olhos, bigodes e unhas e pêlos
E tudo lhe fala baixinho.
E ele caminha em silêncio felino
Para escutar os mistérios.

Do alto de algum dos armários
O gato está me espiando
Ele faz da mobília e dos cômodos
Uma casa com vida e com graça.

(Umo gato dormindo quieto
Sonhando com a caça ou comigo
Deitado e é como se fosse
Um palácio a mais simples casa).

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Contos Urbanos


Delírios numa torre no centro de Porto alegre

Então segurei firme, mas a janela insistia em ficar aberta.
O vento era muito forte, cantava lá fora e acho que tive medo. A janela dançava e o vento continuava cantando. Mas não era nada de poesia, era um temporal terrível e eu sentia o prédio balançar no meio daquela garoa. O tempo prometia algo muito forte, um furacão, um terremoto, uma bomba atômica, sei lá. Mas o que veio foi aquela garoa fina, interminável, meio que um orvalho caindo. E o vento continuava absurdo, e me sentia mais alto do que poderia agüentar, nesse prédio enorme de vinte andares sem explicação.
Decidi não sair de casa, sentei naquele longo sofá (grande demais pra Cecília e eu, parece sempre que falta alguém) e fiquei encarando a janela que continuava a teimar.
Levantei e olhei pra baixo, através do vidro trêmulo. Os guarda-chuvas se abriam lá embaixo e era como confete colorido, pontinhos redondos de todas as cores.
Do meu apartamento vejo muito da cidade, embora a maioria dos lugares nunca conheci pessoalmente.
A Cecília encara as coisas pela janela também, de vez em quando batendo de cara no vidro, quando tenta caçar um passarinho, esquecendo-se de que é impossível. Eu também costumo bater a testa na vidraça, também por causa dos passarinhos e às vezes por causa de alguns problemas.
O prédio é tão alto, daqui de cima há poucas coisas que não pareçam mais bonitas. A cidade parece calmamente pronta, é como se não houvesse nada a ser feito.
Então abro a vidraça, o temporal começa a hesitar, e inclino meu corpo como posso, me debruçando no parapeito da janela. O vento é forte demais, meus cabelos balançam, me sinto em uma torre, altíssima.

(E se o príncipe chegar, lá embaixo, o que vou fazer? E se pedir que eu jogue minhas tranças? Como explicar meus cabelos tão curtos? Como pedir com gentileza, sem quebrar o irremediável encantamento deste instante, que ele use o elevador?)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Conversa de gatos



- Hey!
- What?
- I've seen this!
- Shhhh!
- Hum! Ass!
- What?
- Nevermind. You... You don't listen.
- Since when?
- Since always. Arhh!
...
- Someone is coming. Act like a cat!
- Rrrrr...
- Meow. Meow. Meow.
- Rrrrr....
- Act real cute! They'll give us treats! Lie down!
...
- Are we getting any treats yet? Are we getting any treats?
- Not yet. Keep going

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Diário-Crônica


As coisas invisíveis


Tinha um desenho na parede e a Cecília ficou pulando um tempão pra ver se conseguia pegar. Acho que ela sabia que era um desenho, mas, mesmo assim, continuava pulando.
Se fosse uma borboleta ou um passarinho, tenho certeza de que o instinto caçador dela a faria pular com o mesmo entusiasmo. Mas não era nada disso. Léo desenhou na parede uma coisa qualquer, ficou lindo, preto, por cima do interruptor de luz e a Cecília não resiste àquele desenho. Senta-se no chão, aos pés do interruptor e olha pra cima, fitando aquelas linhas pretas. E pula, pula como uma gata louca que é. Pra ela, não faz diferença se é de verdade ou se é de mentira. Minha gata de apartamento provavelmente nunca irá caçar um passarinho de verdade e dificilmente algum dia terá o prazer de uma investida voadora contra uma borboleta. Mas se diverte como louca com meus objetos da casa; pra ela não faz diferença. Ela nasceu com algo por dentro, algo que lhe diz para atacar quando vê uma coisa em movimento. Ou quando desconfia com muita certeza de algo parado. E assim ela luta com tudo, até com sua sombra, com a cortina que se mexe, com meu cabelo, com a luz do sol refletida nas coisas, com o rolo de papel higiênico que se move frenético quando ela puxa uma pontinha. Tudo é tão fácil pra ela, não há distinção. Está ali, é dela. Não precisa ser de verdade, não precisa estar vivo, nem precisa ser algo. O nada também a diverte. Às vezes, ela olha fixamente pro vazio, prum canto sem nada da casa e mia ou arrepia todo o pêlo, me avisando de algo que não vejo. O que pensar dessa ameaça invisível? Tudo existe pra ela e tudo ela enxerga. As listras em seu pêlo têm uma simetria que ninguém desenhou e seus bigodes lhe avisam de coisas que eu nunca saberei. O que pensar de um ser que sempre saberá mais do que eu sobre todas as coisas desse mundo? Como não admirar com todo meu coração essa criatura que olha pro vazio com olhos que nunca se convencerão do nada?

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Diário-Crônica


O gato japonês


Cheguei em casa, aquelas roupas todas penduradas pelo apartamento, secando. Lavei pra ver se saia um pouco de mim daqueles tecidos. A Cecília não gosta quando lavo a roupa; estendo como consigo aquele mundaréu de coisas úmidas (que sensação terrível a de um tecido molhado!), mas a gata estranha aquela barraca colorida armada dentro de casa. Não resiste, puxa um por um, camisetas, vestidos, calcinhas, o prendedor pula como um grilo e ela o pega no ar, sua presa. Não me canso de me surpreender com as coisas incríveis que faz Cecília, mas o ritual dela de destruir aos poucos a casa sempre me intriga.
Esses dias, minha amiga Ana Cláudia foi a São Paulo e de lá me trouxe um gatinho de porcelana japonês, muito mimoso, que coloquei na estante da sala assim que cheguei. Bobagem! De manhã ele estava no chão, inteiro, mas derrotado – Cecília não deixara por menos aquela invasão de seu território. Ela não atura qualquer desaforo, nem que seja inanimado. Não sei como, mas ela conseguiu se enfiar no canto onde coloquei o gatinho e derrubou-o, impetuosamente, matando aquela coisa sem vida como se derrotasse um inimigo.
Meu gatinho de porcelana lutou e sobreviveu, por incrível que pareça, sem arranhões ou rachaduras. Mas Cecília não se convenceu com essa resistência do objeto ante sua destreza felina e, vez ou outra, ainda encurrala o pobre oriental na estante. Não há dúvidas, a casa é dela; insolente fui eu ao trazer o intruso sem pedir permissão para minha dona.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Diário-Crônica



Crônica diária
Quando o dia virou noite, em plenas oito da manhã, ninguém pensou que poderia ser o fim do mundo. A gente olhou pra fora, pela janela, viu aquelas nuvens escuras e prontas e pensou logo que seria a chuva. A Cecília depois me contou que ela tinha certeza de que algo estranho estava acontecendo naquele momento, pois não é à toa que as coisas viram ao contrário, assim de repente.
Achei que ela tinha razão, como normalmente ela tem, mas não dei bola praquele céu todo cinza.
Quando cheguei em casa, depois de conversar com ela e almoçar um miojo que estranhamente me pareceu uma delícia, percebi que, de fato, as coisas não deviam estar certas nesse mundo. Me bateu um sono imenso e era uma da tarde; era como se aquele almoço tão singelo tivesse sido um banquete e eu precisava me revigorar com umas horas de descanso.
Mas eu tinha um milhão de coisas pra fazer, o computador me chamava, com e-mails importantes pra responder e a minha dissertação latejando ali, na tela, me lembrava das minhas obrigações de civilizada.
Olhei pra fora, o céu ainda escuro, aquela noite de tarde me pareceu tão convidativa que, olhando pra tela do meu note, vendo a penca de coisas ali me chamando pra mergulhar no trabalho, me dei conta de que não havia dúvidas sobre o que fazer. Deitei na minha cama desarrumada e dormi, dormi até que, quando acordei, já era dia de novo. A Cecília nem estranhou meu sono repentino e vespertino, afinal, era noite, mesmo sendo tarde, e ela achou muito natural que eu dormisse. Como ela faz toda noite, ficou acordada, me velando, olhando pras coisas da casa que tomam vida quando fecho os olhos, mas que pra ela são muito naturais.
E dormi, dormi até demais, já era dia, cinco da tarde, e senti uma culpa incrível por ter deixado tudo ali, me esperando.
Então liguei de novo meu computador e, para minha surpresa, o mundo continuou enquanto eu dormia, e mais coisas apareceram pra eu fazer.
Me sentei à escrivaninha, como se minhas horas de desligamento nunca tivessem acontecido, e continuei minha vida, fingindo que não tinha dormido, que tudo não passara de um desejo que não realizei, como tantos, encarando minhas coisas com um olhar de quem está devendo dinheiro, mas que sabe que nunca poderá pagar.

terça-feira, 15 de julho de 2008

Um dia, um gato

O gato de manhã
Eu lia o jornal matutino
E o gato chegou tão malhado
Subiu à minha mesa, felino
Olhou e me viu presa fácil.
O gato encarou-me à espreita
Eu, à espera daquele espetáculo.
O peso nas patas traseiras
O bigode pontudo e estático.
As pupilas miravam, certeiras
Aquele meu ato tão básico.
Eu quis me mover na cadeira
Já me via ameaçado.

E, quando, uma vez decidido
O pêlo todo arrepiado
Avançou num ataque ferino,
Olhou uma vez pros dois lados...

Lembrei-me de que eu era alérgico
Alérgico a todos os gatos
Espirrei um espirro enérgico
E foi pêlo pra todos os lados!
O gato desceu tão correndo
Pulando num único salto

Do jornal que eu estava lendo
Ficou só a página quatro.