segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Regato

Renascença...

(Refazenda - Abacateiro acataremos teu ato/Nós também somos do mato como o pato e o leão/Aguardaremos brincaremos no regato/Até que nos tragam frutos teu amor, teu coração – Gilberto Gil)

Quando eu nascer de novo, quero ser gato. Nada de trabalhar o dia inteiro – essa dedicação sem fim ao nada – nada de subordinação, submissão, aceitação. Quero ser gato. Quero me recusar a ser qualquer outra coisa que me obriguem, quero ser feliz com minha natureza felina, sabendo que nunca haverá no mundo ser mais gracioso e inteligente que eu.
Não quero discutir, não quero me explicar, não quero ganhar dinheiro nem me preocupar com o que pensam de mim. Quero ser gato e ter certeza da minha superioridade em relação a todos os seres da Terra. Quero estar certa de que nunca ninguém me questionará, por mais absurdas que sejam minhas ações. Quero derrubar um por um dos objetos da estante, pois sei do efeito abundante da gravidade e olhar a reação de todos, que hesitam em me repreender (a beleza e a elegância causam silêncio).
Quero ser aceito e fim. Quero lamber meu pelo sabendo que minha elegância nunca será superada, me arrumar sabendo-me como absoluto em leveza e formosidade. Não quero mais dar explicações. Quero deitar onde quero, como quero, e ter certeza de não ser importunado. Quero olhar a todos com o desdém das criaturas superiores e ficar-me onde quiser e dormir com a tranqüilidade que não permita interrupções. Quero não mais ser interrompido, quero ser servido por humanos escravos com iguarias dos mais diversos sabores. Quero ser gato.
Quero me contentar com o ritmo de minha própria cauda e saber que nunca o balançar de nenhuma criatura vai se comparar com a minha leveza. Quero deitar ao sol para contemplar somente a mim e a minha cor translúcida pelo raio solar. Quero ter certeza de que nada seria o sol sem minha presença veluda. Quero descobrir meu corpo a cada lambida, quero perceber minha cauda afoita como esse estranho que me espreita, essa sombra que me segue. Quero ser esse gato-sombra que conhece o escuro como conhece a si mesmo.
Quero ser gato e dormir, dormir como quem não liga para nada no mundo além da minha própria existência. E acordar, deparando-me com meu pelo de seda e sentir uma vontade irresistível de ser quem eu sou. Quero a alegria das coisas macias e a possibilidade das coisas invisíveis. Quero vencer o silêncio humano e a cegueira de todos, vendo e ouvindo coisas que ninguém mais conseguirá. E, sendo gato, quero uma mão que afague e talvez algumas palavras suaves. Não quero ser compreendido, nem interpretado. Quero ser gato, e bastar-me com o que sou, nunca duvidando da superioridade que há em saber ouvir as sombras e enxergar o silêncio. E pobres das pessoas que serão sempre pessoas e se contentam em pensarem-se e pensar sobre o que pensam, se metapensando o tempo todo... E vivem nas sombras e não sabem de nada. Quero ser um gato sem perguntas. Um gato apenas. Pois um gato nada sabe, apenas sabe que tudo enxerga. Um gato não tem dúvidas: tem certeza do mistério.

2 comentários:

Gata Lili disse...

Você, com certeza, tem muito bom gosto! Miaaauuu...

srtaParker disse...

Teu texto é felinamente...bom.