quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Diário-Crônica


As coisas invisíveis


Tinha um desenho na parede e a Cecília ficou pulando um tempão pra ver se conseguia pegar. Acho que ela sabia que era um desenho, mas, mesmo assim, continuava pulando.
Se fosse uma borboleta ou um passarinho, tenho certeza de que o instinto caçador dela a faria pular com o mesmo entusiasmo. Mas não era nada disso. Léo desenhou na parede uma coisa qualquer, ficou lindo, preto, por cima do interruptor de luz e a Cecília não resiste àquele desenho. Senta-se no chão, aos pés do interruptor e olha pra cima, fitando aquelas linhas pretas. E pula, pula como uma gata louca que é. Pra ela, não faz diferença se é de verdade ou se é de mentira. Minha gata de apartamento provavelmente nunca irá caçar um passarinho de verdade e dificilmente algum dia terá o prazer de uma investida voadora contra uma borboleta. Mas se diverte como louca com meus objetos da casa; pra ela não faz diferença. Ela nasceu com algo por dentro, algo que lhe diz para atacar quando vê uma coisa em movimento. Ou quando desconfia com muita certeza de algo parado. E assim ela luta com tudo, até com sua sombra, com a cortina que se mexe, com meu cabelo, com a luz do sol refletida nas coisas, com o rolo de papel higiênico que se move frenético quando ela puxa uma pontinha. Tudo é tão fácil pra ela, não há distinção. Está ali, é dela. Não precisa ser de verdade, não precisa estar vivo, nem precisa ser algo. O nada também a diverte. Às vezes, ela olha fixamente pro vazio, prum canto sem nada da casa e mia ou arrepia todo o pêlo, me avisando de algo que não vejo. O que pensar dessa ameaça invisível? Tudo existe pra ela e tudo ela enxerga. As listras em seu pêlo têm uma simetria que ninguém desenhou e seus bigodes lhe avisam de coisas que eu nunca saberei. O que pensar de um ser que sempre saberá mais do que eu sobre todas as coisas desse mundo? Como não admirar com todo meu coração essa criatura que olha pro vazio com olhos que nunca se convencerão do nada?

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Diário-Crônica


O gato japonês


Cheguei em casa, aquelas roupas todas penduradas pelo apartamento, secando. Lavei pra ver se saia um pouco de mim daqueles tecidos. A Cecília não gosta quando lavo a roupa; estendo como consigo aquele mundaréu de coisas úmidas (que sensação terrível a de um tecido molhado!), mas a gata estranha aquela barraca colorida armada dentro de casa. Não resiste, puxa um por um, camisetas, vestidos, calcinhas, o prendedor pula como um grilo e ela o pega no ar, sua presa. Não me canso de me surpreender com as coisas incríveis que faz Cecília, mas o ritual dela de destruir aos poucos a casa sempre me intriga.
Esses dias, minha amiga Ana Cláudia foi a São Paulo e de lá me trouxe um gatinho de porcelana japonês, muito mimoso, que coloquei na estante da sala assim que cheguei. Bobagem! De manhã ele estava no chão, inteiro, mas derrotado – Cecília não deixara por menos aquela invasão de seu território. Ela não atura qualquer desaforo, nem que seja inanimado. Não sei como, mas ela conseguiu se enfiar no canto onde coloquei o gatinho e derrubou-o, impetuosamente, matando aquela coisa sem vida como se derrotasse um inimigo.
Meu gatinho de porcelana lutou e sobreviveu, por incrível que pareça, sem arranhões ou rachaduras. Mas Cecília não se convenceu com essa resistência do objeto ante sua destreza felina e, vez ou outra, ainda encurrala o pobre oriental na estante. Não há dúvidas, a casa é dela; insolente fui eu ao trazer o intruso sem pedir permissão para minha dona.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Diário-Crônica



Crônica diária
Quando o dia virou noite, em plenas oito da manhã, ninguém pensou que poderia ser o fim do mundo. A gente olhou pra fora, pela janela, viu aquelas nuvens escuras e prontas e pensou logo que seria a chuva. A Cecília depois me contou que ela tinha certeza de que algo estranho estava acontecendo naquele momento, pois não é à toa que as coisas viram ao contrário, assim de repente.
Achei que ela tinha razão, como normalmente ela tem, mas não dei bola praquele céu todo cinza.
Quando cheguei em casa, depois de conversar com ela e almoçar um miojo que estranhamente me pareceu uma delícia, percebi que, de fato, as coisas não deviam estar certas nesse mundo. Me bateu um sono imenso e era uma da tarde; era como se aquele almoço tão singelo tivesse sido um banquete e eu precisava me revigorar com umas horas de descanso.
Mas eu tinha um milhão de coisas pra fazer, o computador me chamava, com e-mails importantes pra responder e a minha dissertação latejando ali, na tela, me lembrava das minhas obrigações de civilizada.
Olhei pra fora, o céu ainda escuro, aquela noite de tarde me pareceu tão convidativa que, olhando pra tela do meu note, vendo a penca de coisas ali me chamando pra mergulhar no trabalho, me dei conta de que não havia dúvidas sobre o que fazer. Deitei na minha cama desarrumada e dormi, dormi até que, quando acordei, já era dia de novo. A Cecília nem estranhou meu sono repentino e vespertino, afinal, era noite, mesmo sendo tarde, e ela achou muito natural que eu dormisse. Como ela faz toda noite, ficou acordada, me velando, olhando pras coisas da casa que tomam vida quando fecho os olhos, mas que pra ela são muito naturais.
E dormi, dormi até demais, já era dia, cinco da tarde, e senti uma culpa incrível por ter deixado tudo ali, me esperando.
Então liguei de novo meu computador e, para minha surpresa, o mundo continuou enquanto eu dormia, e mais coisas apareceram pra eu fazer.
Me sentei à escrivaninha, como se minhas horas de desligamento nunca tivessem acontecido, e continuei minha vida, fingindo que não tinha dormido, que tudo não passara de um desejo que não realizei, como tantos, encarando minhas coisas com um olhar de quem está devendo dinheiro, mas que sabe que nunca poderá pagar.